Premonições Falsas, Memórias Verdadeiras, Agentes do Acaso & outras coisas

Por @meire_md

Nunca houve um ano em que tantas pessoas que conheço morreram, nem um ano no qual considerei tão fortemente a hipótese de que não estaria viva em dezembro.

Se eu fosse uma pessoa predisposta à depressão, estou certa que este ano experimentaria o primeiro surto.

A impressão de que vou morrer por causa respiratória – algo bastante compreensível para quem tem asma – me acompanha desde criança, mas nunca carrega um sofrimento antecipatório verdadeiramente incômodo.

Aí veio essa bosta, o ano de 2020.

O velho pensamento sobre morrer por angústia respiratória ficou diferente e materializou-se em uma quase certeza assustadoramente próxima quando alguns colegas médicos que tinham asma morreram.

Isso pode parecer um tema de fim de ano muito ruim para você, mas este não é um post triste.

Tenha paciência.

Um balaio de coisas diversas

A minha asma é persistente e tem comorbidade com refluxo e rinite. Uma coisa piora as outras e as outras pioram a uma, ou uma piora cada uma, separadamente. Além disso, o que você já deve saber, tenho Doença Celíaca, mas vamos esquecê-la  hoje.

Uso vários medicamentos diariamente [broncodilatador de longa duração, corticóide inalatório, montelucaste, pantoprazol, bromoprida, olmesartana] e um broncodilatador de curta duração para resgate das crises que se repetem semanalmente.

Quando fico cansada 100% do dia, as doses das medicações são ajustadas e uso também corticoide oral, que piora o refluxo [e a pele, posso falar depois como lido com isso] e faz com que eu precise dormir sentada.

Com esse programa de tratamento e profilaxia  nunca precisei faltar ao meu trabalho, que não exige esforço físico.

Esse é o primeiro ponto deste post: muitas doenças crônicas bem manejadas podem continuar sendo limitantes, podem continuar trazendo sofrimento, podem continuar sendo fatores de risco para morte precoce, mas você consegue melhorar a sua qualidade de vida com os tratamentos médicos.

Foque nessa meta e não em reclamar da existência da doença. Ela não vai embora. Reclamar só nos fragiliza ainda mais e afasta  pessoas, não é vantajoso em nada. Ninguém gosta de conviver com quem só reclama.

Comer, Beber e Respirar

As pessoas que nunca tiveram falta de ar não tem ideia – ótimo, espero que nunca precisem perceber isso – que a sensação do ar entrando pelos pulmões e saindo normalmente deles é tão acalentadora quanto às sensações de matar a fome e a sede.

Quem é ‘normal’ precisa comprar água e alimentos para sobreviver, mas respira sem qualquer esforço ou custo.

Mas para mim, o ar também precisa ser, de certa forma, comprado.

Mesmo com toda a medicação, a cada refeição minha respiração fica anormal por um tempo e este é o motivo pelo qual quando em serviço presencial faço o desjejum às 5h da manhã para começar a trabalhar às 7h e não faço lanches no horário de trabalho. A minha voz fica entrecortada e preciso fazer pausas, o que é bem desconfortável quando você está atendendo pessoas.

Essa dispneia perene pós-alimentar é meu basal há 18 anos, vem desde 2002. Por muito tempo não era raro eu chorar depois que comia, mas simplesmente me acostumei e me adaptei.

Se tenho uma crise de riso, coisa que não é rara porque eu sou tão idiota que vejo humor em coisas improváveis, preciso usar broncodilatador de curta duração – tem bombinha na mochila, na cabeceira, dentro do carro.

E não consigo fazer atividade física aeróbica sem usar a bombinha antes, por isso só faço musculação. Isso nunca me fez evitar um riso descontrolado nem nunca foi o real motivo pelo qual eu fui irresponsável quanto a adquirir o hábito de me exercitar regularmente.

O segundo ponto é que precisamos nos resignar e aceitar as coisas que são impossíveis de mudar.

Eu já estou muito bem medicada, faço tratamento com o melhor pneumologista da minha cidade mas não fico sem sintomas. Não me acomodei. Resignar-se não é sobre ser um agente passivo da própria vida.

Devo à Meire criança a capacidade de não permitir que a sensação ruim de não respirar plenamente tome conta da minha mente. Quantas vezes a angústia respiratória tomou conta dos meus pequenos pulmões,  usei a bombinha do jeitinho que meu médico japonês – cujo nome já há muito foi esquecido – e peguei um livro da Enciclopédia de casa para me distrair durante a madrugada?

A pequena Meire me ensinou a lidar com adversidades porque ela teve pais que não faziam escândalo, que não se assustavam na frente dela, que não viam a asma como o fim do mundo. Eles não passavam para mim a preocupação que certamente tinham.

Minha mãe chegou a me carregar no colo pelas ruas de São Paulo de madrugada, com cachorros latindo e se enroscando em suas pernas enquanto ela tentava chegar ao Hospital para evitar minha morte. Ela não sabia dirigir e estava sozinha.

Meu pai cruzou uma serra em alta velocidade para salvar a minha vida.  Dois dos meus tios salvaram a minha vida, um quando passei o fim de semana com eles e o meu padrinho, com quem morei por um período. E essas histórias ficaram para trás. Eles não transformaram isso em um espetáculo para expor inúmeras vezes a amigos e a todo mundo.

O terceiro ponto está aqui.

Se você tem um familiar com problemas crônicos, não o rebatize. Ele tem nome, tem uma identidade única.  Não coloque a doença como o assunto principal da mesa na hora do almoço.

Não sei se isso é típico do nordeste porque me formei aqui e não tenho referência de outros locais. Mas as pessoas parecem ter um prazer  mórbido de expor repetitivamente o parente doente, tratá-lo exaustivamente como coitado, expor seu histórico detalhadamente todo tempo, o tempo todo. Isso mina a autoestima das pessoas e na minha opinião fabrica mentes frágeis que fazem o corpo sucumbir ainda mais.

Não façam isso. E se você é o alvo, deixe claro que não aceita ser diminuído.

Da Felicidade de Acordar Todos os Dias

Desde criança sou invadida por uma felicidade enorme quando acordo, mesmo que o dia anterior tenha sido muito ruim. Se isso tem relação com a asma, não posso dizer, mas talvez tenha.

Esse é o quarto ponto. Se você tem uma doença crônica não rumine sobre ela.

Foque nos facilitadores, nas rotinas que você pode mudar para deixar a sua vida melhor, e não no quanto a sua vida parece ruim por causa da doença.

A gente vê muito melhor para onde olha atentamente.

Profecia não realizada

Se eu não fosse uma pessoa tão cética teria sucumbido ao pensamento de que estaria tendo uma premonição, e olhe que não foi fácil lutar contra.

Mesmo rejeitando a sensação profética, quando dei por mim já estava organizando algumas coisas com relação à minha família, dando andamento a pendências e até tentando fazer com que meu marido se envolvesse mais nas decisões financeiras que exerço em relação ao nosso futuro.

E seria hipócrita se dissesse que não chorei algumas vezes. Chorei sim, mesmo sabendo que não tenho nem de perto qualquer resquício de capacidade de prever algo tão complexo.

O quinto ponto é: essa sensação de que você vai morrer antes das pessoas que ama é normal. Vários pacientes reportam isso.

Obs.: Se você sofre de modo desconfortável, procure auxílio em saúde mental.

Parabéns pra você, nessa data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida

Fiz aniversário em novembro e enquanto estava meditando – sim, estou conseguindo meditar apesar dos protestos fugidios do meu pensamento acelerado –  me vieram as ideias para o post Baixa Renda & Saúde Financeira, que tanto me pediram no Instagram.

As anotações mentais de aniversário, infância, vida difícil e baixa renda me transportaram para um sentimento de paz, que por sua vez me remeteu à música que está no topo deste post e devolveu meu  velho pensamento de morte à sua caixinha mental empoeirada, de onde sei que sairá vez por outra.

O sexto ponto deste post é que nós raramente pensamos no quanto devemos ao acaso, simplesmente porque muitas vezes as suas consequências só aparecem anos depois.

Nós somos gratos aos nossos ancestrais – se meus avós não tivessem proporcionado a migração dos meus pais para o sudeste eu não seria quem sou hoje – somos gratos a amigos que nos estenderam a mão em algum momento ou a um chefe que reconhece nossas potencialidades, mas esquecemos da mão invisível do Acaso.

Posso dizer que o Senhor Acaso salvou a minha vida e a sua vida inúmeras vezes.

E os ‘mensageiros’ deste Senhor são pessoas que passam tão rapidamente por nossas vidas que muitas vezes não são percebidas. Perdemos oportunidades que estavam ali, bem perto de nós, ou as recebemos sem ter plena consciência do quão grande são.

Você pode ter sido esse agente na vida de alguém e nem sabe.

Nenhuma biografia pode ser completa sem as reminiscências dos atos do Acaso e de pessoas relacionadas a ele, anônimas ou não.

Você pode chamar o Sr. Acaso de Deus.

O importante é que você tente, depois deste ano tão difícil, lembrar quem foram os agentes que de alguma forma melhoraram a sua vida.

Não sei se era branco, preto, gordo ou magro

Fui alfabetizada quando ainda muito pequena [obrigada, vô] e fazia tantas perguntas que meus pais, mesmo com um orçamento muito apertado, findaram comprando para nossa casa uma Enciclopédia que imitava a Barsa, que foi lançada em 1960 e era bem cara.

A nossa era uma enciclopédia mais ‘barata’ – o que só descobri quando estava na adolescência – porém vinha com dois brindes incríveis, um dicionário de português dividido em vários livrinhos pequenos e um dicionário de sufixos e prefixos. Para mim ela era a melhor enciclopédia do mundo, era gigante e preenchia boa parte da nossa pequena estante (que inclusive tinha as pernas bem bambas).

Pois bem.

A meditação do dia 23/11/2020 me transportou para o vendedor da Enciclopédia e do sentimento de gratidão que eu devia a ele.

Mas ele existiu? Meus pais compraram essa Enciclopédia como? Será que ela não foi presente dos meus padrinhos ou de outros tios? Teria a meditação produzido uma falsa memória?

Não, nada de falsa memória (comum na meditação, pensem nisso). Ele existiu mesmo.

Quantos eventos precisaram acontecer para que aquele senhor (ou jovem, vai saber) passasse na porta dos meus pais exatamente no momento em que eles tinham algum dinheirinho sobrando?

Será que eu estava perto e insisti? Isso não lembro.

Como eu teria tido acesso a tantas coisas que a Escola não ensinava às crianças da minha idade se não fosse a minha Enciclopédia?

Como eu teria me fascinado por ciência sem ter, aos cinco anos, lido sobre a vida de Walt Disney e conhecido a fantástica (e improvável) criogenia?

A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier

Em um ano com tantas mortes, nós, que já somos um evento natural raro – você só é você porque um exato espermatozoide encontrou um exato óvulo e você sobreviveu a todas as ameaças à vida – deveríamos ser gratos ao Senhor Acaso ou ao Senhor Deus.

Eu poderia ter sido infectada pelo vírus da vez quando precisei levar minha mãe ao dentista, quando fiz mamografia ou quando recebi minha vacinação anual. Por mais que nós adotemos as medidas de mitigação, não há eliminação do risco biológico. Mas por Acaso não peguei.

E o Acaso também protegeu pessoas que pegaram cepas mais ‘leves’ ou pessoas que poderiam ter uma evolução desfavorável e não pegaram.

Que este ano de 2020, no qual muitas pessoas com doenças crônicas viveram sob medo constante e realizaram tratamentos médicos de modo irregular, termine bem para a maioria de nós e que 2021 traga a todos muita paz, uma melhor qualidade de vida, muita união familiar e aguce a nossa capacidade de perceber os mensageiros de oportunidades que não merecem ser perdidas.

Um beijo a todos e muito obrigada pela companhia em 2020.

Vocês acham que os ajudei com as respostas pelo Direct do Instagram, mas vocês me ajudaram muito mais.

 

Meire

Igor, amo você além do infinito.

 

(Letra de Epitáfio)

“Devia ter amado mais

Ter chorado mais

Ter visto o sol nascer

Devia ter arriscado mais

E até errado mais

Ter feito o que eu queria fazer

Queria ter aceitado

As pessoas como elas são

Cada um sabe a alegria

E a dor que traz no coração

O acaso vai me proteger

Enquanto eu andar distraído

O acaso vai me proteger

Enquanto eu andar

Devia ter complicado menos

Trabalhado menos

Ter visto o sol se pôr

Devia ter me importado menos

Com problemas pequenos

Ter morrido de amor

Queria ter aceitado

A vida como ela é

A cada um cabe alegrias

E a tristeza que vier”

 

 

 

 

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14 comentários em “Premonições Falsas, Memórias Verdadeiras, Agentes do Acaso & outras coisas”

  1. Que post lindo Meire! Como sempre de uma delicadeza. Demorei a voltar aqui no saladamedica porque foram bem corridos esses últimos dias, mas agora entendo que foi no momento certo. Por acaso o senhor acaso sabia a hora certa do acaso ocorrer…😅❤️

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  2. Sobre expor o parente doente, minha avó era assim. Nasci e fui criada no Sudeste, mas meus pais são nordestinos. Na infância, durante as férias no Nordeste, hospedada na casa do avó materna, sempre adoecia. Se eu passasse mal durante a noite, a avó espalhava pro mundo inteiro. Virava o assunto do dia. Quando criança eu era cheia de pudores, morria de vergonha de ficar doente, ficava com raiva dela contar pros outros rsrs. Deve ser cultural mesmo esse tipo de atitude kkk. Desejo tudo de melhor pra você e sua família no novo ano que se inicia. Que o “Senhor Acaso” abençoe você com muita saúde e com uma vida longa.

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  3. Meire, que texto emocionante ❤️
    Sou muito grata a você, muito obrigada por me fazer refletir e aprender!
    Beijos 😘

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  4. Obrigada, Meire pelo seu tempo, pela sua inteligência pelas sabias sensatas palavras,sempre com muito amor ao próximo!
    obrigada pela força que vc me deu esses dias tão difíceis que passei .
    E como e gostoso ler suas postagens !!!!
    Que nosso ano de 2021 seja de muita saúde!

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